CONVERSANDO COM O MAR
J. Carino
Converso com o mar. Contemplando-o, de longe ou de perto, minh`alma se socorre desse
poderoso interlocutor para purgar seus sofrimentos; meu corpo, seja no contato das
águas com a pele, seja no cheiro forte e inconfundível invadindo as narinas, entra
em sintonia completa com esse aquoso amigo.
São conversas infindáveis, nas quais as palavras parecem mergulhar na massa líquida
e aumentar sua polissemia: o que digo e o que ouço ampliam ao infinito seu significado.
Falo e escuto. As respostas vêm com notável nitidez. O marulhar das ondas, por mais
forte que esteja, não interfere - a comunicação se dá diretamente entre o âmago de
meu ser e a própria alma do mar.
Meu liquefeito amigo combina uma impressionante capacidade de ouvir com um extraordinário
talento para falar. É uma voz com ricas modulações: por vezes, um sussurro delicado;
noutros momentos, um vozeirão forte e imperativo.
Quase sempre, meu paciente amigo escuta em silêncio e aconselha com doçura. Porém,
muitas vezes enfurece-se com minhas angústias e se mostra encapelado, lançando-me
palavras furibundas e brilhos intensos que parecem um olhar fuzilante.
Outra forma encontrada pelo mar é falar-me aos olhos com a aparência de suas águas.
Há dias em que se apresenta com um verde-esmeralda dúbio e indagador; noutros, um
azul-marinho transmite a conciliação e a paz; existem dias em que as águas exibem uma
cor escura e indefinida, entre um verde carregado e um azul profundo, e isso acontece
quando são densos meus pensamentos e dolorosa minha lamentação. Nestes dias, o mar
vai cambiando também o tom com que me fala: passa das reprimendas severas às palavras
de carinho.
Caminho ao longo da praia e meu amigo mar manda recado também por seus intermediários.
Uma mensagem de esperança pode vir do grasnar de uma ave marinha com sua silhueta
delicada recortada contra um céu saturado de azul. De um peixe prateado que salta
posso receber um recado de condenação à imobilidade e à conformação.
Os odores exalados pelo mar são igualmente eloqüentes: a maresia forte parece
obrigar a uma concentração mais intensa em face dos problemas que me afligem; um
cheiro agridoce diz-me mais sobre coisas felizes, males sanados, feridas cicatrizadas.
É riquíssima a expressão do mar em seus movimentos. Ondas fortes quebram com violência,
traduzindo a veemência desse meu poderoso amigo; as marolas suaves significam uma voz
paciente que busca a amigável persuasão; borrifos que espalham cristais de água e luz
talvez signifiquem a riqueza da adjetivação.
Às vezes, numa ânsia comunicativa, o mar chega a tocar-me. Acontece quando, próximo à água,
caminho cabisbaixo, ensimesmado. Então, uma onda mais forte lança-se num generoso
suicídio contra as pedras, e gotas espalhadas pelo ar, depois desse poético sacrifício,
caem sobre meu corpo e me restituem a sensação de estar vivo.
Um dos momentos mais intensos em nossos diálogos acontece quando me rendo à vontade
de uma entrega total a um abraço amigo, lançando-me às águas benfazejas. Meu corpo e
minha alma se fundem com a alma do mar. Por vezes, bracejo, como hesitando em fundir-me
com o espírito do mar, como temendo a última fuga em direção às profundezas, onde a
comunicação poderá ser total ou um silêncio absoluto reinar para sempre; em outros
momentos, flutuo sobre as ondas, deixando-me levar, amparado pelos braços com vigor
tanto poderoso quanto liquefeito. Na pele, sinto a carícia das águas, aconchegante refúgio.
Converso com o mar. E não há nessas conversas a insinceridade da maioria das conversas
humanas; não há hipocrisia e subterfúgios.
Quando me despeço e me afasto, o mar ainda me fala ao longe, como a desvelar-se em
proteção. Meus ouvidos parecem transformar-se, então, em conchas, nas quais reverberam - e
talvez para sempre - as palavras do mar, numa linguagem que às vezes é clara, altissonante,
incisiva, e noutras é ambígua, sussurrante e até suplicante. Porém, sempre, inegavelmente
amigas.
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