A cidade acorda e se surpreende ao saber que um prédio ameaça desabar. Este é um duro golpe no orgulho feito de pedra e cal; uma pancada certeira na vaidade citadina, que se envaidece imaginando firmes, seguras e inamovíveis suas construções de casas empilhadas, numa espécie de desafio iconoclasta aos céus.
O que parecia tão sólido mostra-se frágil. As paredes, caiadas e lisas como a pele branca de uma bela mulher, de repente mostram rachaduras, como rugas fundas que tivessem surgido durante a noite.
Inclinado, o edifício sabe-se condenado, e geme num esforço hercúleo para, em vão, desafiar a força da gravidade. Inútil; não há mais jeito; os medicamentos das escoras são paliativos nesse corpo de pernas-colunas enfraquecidas, nesse rosto desfigurado com olhos-janelas que já parecem revirar-se como nos estertores da morte. Se não cair agora, cairá depois, pela moderna via rápida da implosão ou pela dolorosa ação das picaretas.
As quatro paredes de nossa casa são, real ou idealmente, o abrigo seguro para onde retornamos depois da guerra diária pela sobrevivência. Aí guardamos nossa vida privada, ou o que resta dela no mundo de superexposição em que vivemos. Eis nossos objetos familiares; eis nosso mundo reservado, onde tentamos preservar nosso pudor, nossa privacidade, nossa intimidade.
De repente, para quem mora num prédio desses, tudo acaba. Em plena madrugada, ou logo pela manhã, gente como a gente é mostrada pela TV e sai nas fotos dos jornais, expondo seu desespero, vagando próximo à sua toca moderna já agora irreconhecível, transformada num lugar de perigo.
Ao primeiro momento de pavor segue-se a revolta; depois desta, a luta desesperada para salvar alguma coisa do que parecia uma vida tão organizada, numa rotina tão confiável. Então, nossos olhos atônitos vêem objetos muito íntimos, como colchões, fogões, geladeiras, guarda-roupas - e as próprias roupas - expostos à luz da vida pública, representada pelos holofotes das emissoras de televisão e pelos flashs das máquinas fotográficas.
Pelos olhos implacáveis das câmeras e máquinas, invadimos essa privacidade de gente como nós, que não tem saída senão desnudar sua intimidade diante de todos.
Por mais insensível que alguém seja, de mais empedernido coração, não há como manter-se indiferente a um drama assim. Mesmo a classe média que já não se enternece diante da tragédia de uma favela em chamas, parecendo-lhe tão natural aquele desabrigo cruel, sente- se com o peito oprimido – talvez mesmo porque mora em prédios assim, aparentemente muito mais seguros que as frágeis construções de madeira, papelão e zinco, erguidas por uma construtora chamada miséria...
Nesses momentos, o prédio que ameaça desabar parece-nos nosso prédio; as coisas expostas, nossas coisas; as vidas bagunçadas, nossas vidas.
A sensação de desamparo, de insegurança é inevitável; a de vergonha, também. Muitos já estiveram em seus pesadelos numa situação assim: nus, tentando em vão ocultar as partes íntimas do corpo; tentando correr para escapar; fugir ao ridículo da exposição do que não se deseja mostrar a todos. Talvez seja isso que os moradores de um prédio que ameaça cair sentem em seus corações.
Passam-se os dias. A vida segue. Os holofotes se apagam e as câmeras e máquinas procuram por algo mais espetaculoso. As batalhas jurídicas começam, em busca da reparação material. Discussões intermináveis vão buscar explicações, justificativas e culpados. Enquanto isso, os moradores sofrerão, obrigados a trocar seu lar pelo ambiente despersonalizado do abrigo provisório chamado hotel.
O prédio continua lá. À sua volta, apenas os operários incumbidos de pôr bengalas provisórias nas mãos desse condenado; e também alguns dos moradores, de olhos compridos e súplices, vendo um pedaço de sua vida prestes a ruir, vendo seu sonho desabar.
|